Parado, ali, sobre a grama verdinha do asilo, Guilherme hesitou por um instante. Lembrara de uma cena, há muito esquecida, de sua pré-adolescência.
Na cozinha, sentada a mesa, com o velho maço de Free vermelho, um deles aceso sobre o cinzeiro, ela com sua voz em alto e bom tom, com uma bacia de pipoca e uma xícara de chá-mate; dizia que preferiria morrer a ir para um asilo. Criar um filho, dar tudo: carinho, amor, afeto, e - o mais importante - dinheiro; não mereceria uma recompensa tão cruel.
Isto marcou Guilherme, como um lembrete a ser encontrado no fundo de uma gaveta poeirada: não colocá-la num asilo. E era justamente o que fazia no momento. Olhara para ela, no fundo de seus olhos castanhos, os cabelos já todos sem a graça da juventude - grisalhos-, mas amarrados fortemente e com segurança como foi por toda a vida. Nas mãos, apertando contra o corpo, um retrato do marido: que saudade sentia dele!
Guilherme começou a procurar desesperadamente em sua mente alguma justificativa que explicasse seu ato. Pensou em sua falta de tempo, em sua leviandade, em seu despreparo; contudo, só o que veio-lhe à cabeça como uma doída beliscada foi: "estou vingando-me."
Outra memória de remotos tempos, reviveu-lhe seus acessos de ira juvenil. Seu completo desencaixe familiar, sua busca incessante por si mesmo, seus desamores, as cobranças ilógicas por parte dos pais e mais exemplos. Lembrou-se de tanta coisa! De tantos dias!
Nas recordações dolorosas, teve certeza de que conseguiu cumprir tudo aquilo quanto tinha prometido a si próprio: ter a profissão que queria, achar seu grande amor, casar-se, ter filhos e desenvolver sua obra de arte. Então, por um instante, veio-lhe em mente para quem realmente eram essas promessas: para os pais. Não diretamente, pois, para eles, por mais amor que tivessem, a grande maioria das escolhas do filho eram erradas. Simplesmente inconcebíveis, era o que diziam, mesmo com uma pontinha de torcida para que os errados fossem eles! E Guilherme queria apenas conseguir tudo aquilo para esfregar na cara de quem mais o amava, para, assim, encher-se de júbilo e honra.
Não fora bem assim que fizera. Alguém ensinou-lhe os preceitos da humildade, que mandavam agir com mansidão de caráter: mostrar-se vitorioso, mas pacífico, resguardado e encher a família de orgulho fazendo-lhes certos de que valera a pena a pontinha de torcida antes mencionada.
Com o tempo, as cobranças foram diminuindo, os elogios eram mais frequentes, no entanto, menos enfáticos. E todos viviam bem. Claro que não uma vida perfeita, mas dentro dos limites da raça humana e suas desproporções sócioafetivas.
Daí o pai morreu.
Por ser, talvez, tão mergulhada em seus conceitos e certezas, a mãe já não era a mesma muralha que fora trinta anos atrás. Não bastaria-lhe uma vida sozinha, no resguardo e na lembrança do grande amor. Então ele e a irmã optaram pelo asilo.
Quando ia dar o passo para sair do gramado e entrar na escadaria de entrada, veio-lhe a sensação da fumaça na cara, o cheiro de pipoca, o gosto de chá mate e a potência da voz da mãe.
Desabou em pranto. Não necessariamente por colocar quem gerou-lhe e amou naquele lugar, mas sim por ter percebido a falha no processo de sua vida.
Guilherme, à medida que enrijecia-se de preceitos e conceitos de vida, tornava-se singular. Perdera a base. Não a base docente de um pai e de uma mãe - aprender a gente aprende com todo mundo -, mas sim a maneira de expor aquilo que sentia por eles. De uma época pra frente, Guilherme esqueceu-se de deixar-se amar. De dar um abraço, de dizer que amava seu pai, de contar seu dia mesmo sem ser perguntado, de perguntar sobre o dia mesmo sem obter resposta, de encontrar o ponto em comum com sua família e louvá-lo, afinal, não é só encontrando problemas e resolvendo-os que a gente vive.
Enfim, por mais certo que tivesse dado na vida, seu pai morreu na incerteza do amor do filho... e a mãe iria morrer ainda mais só de que se tivesse ficado em casa. Guilherme esquecera de renovar dia a dia, mês a mês, hora a hora os laços afetivos que nos unem com aqueles que viam nele sua única razão de existir. Ele, em algum momento de sua vida, não mais se permitiu amar pelos seus pais.
Entrou, puxou a mãe pelo braço gentilmente, e trouxe-a para fora perguntando:
- O que lhe faria melhor agora?
E ela sorrindo de canto olhou para o céu, apertou fortemente o retrato e disse:
- Três reais para eu comprar um Free.
Na cozinha, sentada a mesa, com o velho maço de Free vermelho, um deles aceso sobre o cinzeiro, ela com sua voz em alto e bom tom, com uma bacia de pipoca e uma xícara de chá-mate; dizia que preferiria morrer a ir para um asilo. Criar um filho, dar tudo: carinho, amor, afeto, e - o mais importante - dinheiro; não mereceria uma recompensa tão cruel.
Isto marcou Guilherme, como um lembrete a ser encontrado no fundo de uma gaveta poeirada: não colocá-la num asilo. E era justamente o que fazia no momento. Olhara para ela, no fundo de seus olhos castanhos, os cabelos já todos sem a graça da juventude - grisalhos-, mas amarrados fortemente e com segurança como foi por toda a vida. Nas mãos, apertando contra o corpo, um retrato do marido: que saudade sentia dele!
Guilherme começou a procurar desesperadamente em sua mente alguma justificativa que explicasse seu ato. Pensou em sua falta de tempo, em sua leviandade, em seu despreparo; contudo, só o que veio-lhe à cabeça como uma doída beliscada foi: "estou vingando-me."
Outra memória de remotos tempos, reviveu-lhe seus acessos de ira juvenil. Seu completo desencaixe familiar, sua busca incessante por si mesmo, seus desamores, as cobranças ilógicas por parte dos pais e mais exemplos. Lembrou-se de tanta coisa! De tantos dias!
Nas recordações dolorosas, teve certeza de que conseguiu cumprir tudo aquilo quanto tinha prometido a si próprio: ter a profissão que queria, achar seu grande amor, casar-se, ter filhos e desenvolver sua obra de arte. Então, por um instante, veio-lhe em mente para quem realmente eram essas promessas: para os pais. Não diretamente, pois, para eles, por mais amor que tivessem, a grande maioria das escolhas do filho eram erradas. Simplesmente inconcebíveis, era o que diziam, mesmo com uma pontinha de torcida para que os errados fossem eles! E Guilherme queria apenas conseguir tudo aquilo para esfregar na cara de quem mais o amava, para, assim, encher-se de júbilo e honra.
Não fora bem assim que fizera. Alguém ensinou-lhe os preceitos da humildade, que mandavam agir com mansidão de caráter: mostrar-se vitorioso, mas pacífico, resguardado e encher a família de orgulho fazendo-lhes certos de que valera a pena a pontinha de torcida antes mencionada.
Com o tempo, as cobranças foram diminuindo, os elogios eram mais frequentes, no entanto, menos enfáticos. E todos viviam bem. Claro que não uma vida perfeita, mas dentro dos limites da raça humana e suas desproporções sócioafetivas.
Daí o pai morreu.
Por ser, talvez, tão mergulhada em seus conceitos e certezas, a mãe já não era a mesma muralha que fora trinta anos atrás. Não bastaria-lhe uma vida sozinha, no resguardo e na lembrança do grande amor. Então ele e a irmã optaram pelo asilo.
Quando ia dar o passo para sair do gramado e entrar na escadaria de entrada, veio-lhe a sensação da fumaça na cara, o cheiro de pipoca, o gosto de chá mate e a potência da voz da mãe.
Desabou em pranto. Não necessariamente por colocar quem gerou-lhe e amou naquele lugar, mas sim por ter percebido a falha no processo de sua vida.
Guilherme, à medida que enrijecia-se de preceitos e conceitos de vida, tornava-se singular. Perdera a base. Não a base docente de um pai e de uma mãe - aprender a gente aprende com todo mundo -, mas sim a maneira de expor aquilo que sentia por eles. De uma época pra frente, Guilherme esqueceu-se de deixar-se amar. De dar um abraço, de dizer que amava seu pai, de contar seu dia mesmo sem ser perguntado, de perguntar sobre o dia mesmo sem obter resposta, de encontrar o ponto em comum com sua família e louvá-lo, afinal, não é só encontrando problemas e resolvendo-os que a gente vive.
Enfim, por mais certo que tivesse dado na vida, seu pai morreu na incerteza do amor do filho... e a mãe iria morrer ainda mais só de que se tivesse ficado em casa. Guilherme esquecera de renovar dia a dia, mês a mês, hora a hora os laços afetivos que nos unem com aqueles que viam nele sua única razão de existir. Ele, em algum momento de sua vida, não mais se permitiu amar pelos seus pais.
Entrou, puxou a mãe pelo braço gentilmente, e trouxe-a para fora perguntando:
- O que lhe faria melhor agora?
E ela sorrindo de canto olhou para o céu, apertou fortemente o retrato e disse:
- Três reais para eu comprar um Free.
Comentários
E em tantas outras vezes, acabamos (des)construindo a vida em nossos erros, sem a menor idéia do "futuro prejuízo emocional" que nos aguarda.
Enfim, a vida é essa.
Quem pode fazer a diferença?
Abraço, nego.
Adorei! =]
Achei o texto a sua cara, as vezes você escreve baseando-se em experiências as quais conhece bem. Isso é bom. É um 'querido diário' disfarçado de blog e crônica sobre a vida alheia.
Esse é o meu menino! :)
Mal sabe Guilherme que, seja como for, os pais querem sempre o melhor para seus filhos.
Ótimo texto, Celo! Muito bom mesmo, menine! O que marcou? Ah! Isso aqui:
"não é só encontrando problemas e resolvendo-os que a gente vive."
Abraços...